trilha da mata — luiza gottschalk

A Aura Galeria apresenta Trilha da Mata, exposição individual da artista Luiza Gottschalk, com texto crítico de Angélica de Moraes e entrevista com Charles Watson.

água viva

Há um perigo na temática memorialística: ficar na celebração rasa de um passado ideal, reflexo de uma visão de mundo coesa, quase asfixiante em sua imobilidade sólida. Algo que simula o real mas é a casca do que deveria ser polpa e semente. A áspera contemporaneidade que nos coube viver já não nos permite essas ingenuidades. Presenciamos a falência das certezas pétreas.

Então por quê a pintura produzida por Luiza Gottschalk nos toca tão de perto? Porque a pintora, ao enfocar o memorialismo, elege mergulhar na correnteza mítica apontada por Heráclito como metáfora da vida: o rio, que é sempre ele e sempre outro. Tempo do agora e que Zygmunt Bauman denomina de “modernidade líquida”. Segundo ele, “em certo sentido, os sólidos suprimem o tempo; para os líquidos, ao contrário, o tempo é o que importa” (1).

Olga Tokarczuk (Nobel de Literatura 2018), ao refletir sobre a criação artística, afirma que a dicção própria da identidade autoral resulta de "um fluxo de sensações que se acumulam na armação caótica do nosso temperamento e das características psicológicas fundamentais, como detritos em um ramo submerso na corrente de um rio” (2). São conversas entre o Eu e o Outro, em diálogos de “potencialidade infinita”. É exatamente aí que habita a poética a infundir qualidade e força à pintura de Gottschalk. Ela aborda com frescor a tradição longeva da pintura de paisagem para cartografar impermanências do agora.

O motor dessa série de pinturas está nas cores que fluem, escorrem, respingam e empoçam naturezas sinuosas e translúcidas em grandes áreas das telas, em construções abstratas hibridizadas com figuração e entremeadas por densos fragmentos em tinta a óleo. São técnicas, materiais e linguagens geralmente estanques postos em convívio.

Gottschalk adiciona muita água a pigmentos minerais, fazendo-os viajarem pela superfície de tecidos encharcados, demarcando trajetos de cores em emaranhados de panos de trama muito aberta, que transmitem suas epidermes coloridas para a tela colocada logo abaixo deles. A fluidez das cores traz as melhores qualidades da aquarela para a pintura. A luz transborda do fundo, assim como ocorre com o branco do papel na aquarela. Mas há então outro hibridismo: os panos funcionam como matrizes de “impressão” em negativo, que ocorre quando a tinta fica seca e os tecidos são retirados, deixando na tela rastros e fragmentos de cor por onde a água passou. Epidermes que se tornam núcleos gráficos para ancorar novas camadas de acontecimentos na composição.

A artista impregna as telas da memória aquosa das florestas, das artérias de seiva que fazem a enervação das folhas. Um mundo orgânico trazido do convívio com os mínimos fatos da vegetação olhada de muito perto, na rugosidade dos troncos e nas muitas cores dos líquens e dos musgos. Em consonância com a fragmentação do olhar que temos para o agora.

Por vezes, em nítido registro fauve, as cores intensas ganham protagonismo que jamais caem no excesso. É vivacidade pura, nutrida por conhecimento colorista que destaca a artista com nitidez na produção pictórica atual, muitas vezes carente dessa sutil qualidade. É obra que não trafega por categorias fixas e seguras. Ao contrário. Ela se inscreve no que Félix Guattari denomina de “caosmose” (3) É pintura de subjetividades que obedecem a percepções cognitivas posicionadas por afetos, memórias e percepções pessoais que, paradoxalmente, são capazes de tomar o pulso do nosso momento e conversar conosco. Exato nesse momento de agora, atomizado de contingências.

A paisagem dita natural, seja ela mesma ou seu suposto reflexo, é construção arbitrária. Assim como a memória. Ao assumir o arbítrio da invenção, Gottschalk rompe o impasse da representação e nos coloca diante do encantamento, do sonho e da imaginação compartilhada. Sobrepõe recortes de tempo e espaço, colagens pictóricas que se ajustam por fragmentos e se constroem e reconstroem como caleidoscópio (ou binóculo) que nos vê e faz ver.

As paisagens inventadas desta exposição obtêm uma síntese rara de processos e linguagens da pintura, gravura e desenho. Deste último, como não notar o traço preciso e sintético que, no meio de ambíguas     formas abstratas, inscreve um pássaro e até mesmo uma sugestão de autorretrato da artista quando criança? Uma criança que observa aves. Há algo mais impermanente e ao mesmo tempo tão ancestral quanto o atrevido desafio às alturas? É preciso ter envergadura de asa. A pintura de Gottschalk sem dúvida tem.  

 

angélica de moraes
março, 2023

(1)        BAUMAN, Zygmunt. “Modernidade Líquida”, 2001.
(2)        TOKARCZUK, Olga. “Escrever é muito perigoso”, 2023
(3)        GUATTARI, Félix. “Caosmose: um novo paradigma estético”, 2006


visitação
25 mar, 2023 — 29 abr, 2023

aura galeria
rua da consolação 2767, jardins
são paulo - sp
estacionamento conveniado l’officina (rua da consolação, 2825)

info
+55 11 3034-3825

plantando bananeira
entrevista com charles watson

Essa entrevista não é sobre mim,”*


Há praticamente três anos participo de um grupo de estudos e acompanhamento de processos criativos com o Charles Watson. 


De dentro pra fora de fora pra dentro..

Por diversos momentos tenho a sensação de estar plantando bananeira. Me sinto de cabeça para baixo, pés soltos ao vento. Eu planto bananeiras. Também literalmente. Muda-Banana germina terra adentro, de ponta cabeça.  


Propus para o Charles Watson que fizéssemos uma entrevista,  porém, ao invés dele me entrevistar, eu o faria. Seria uma espécie de triangulação ou inversão:

Eu-Pintura-Ele. 

Desse encontro podem nascer coisas improváveis, improvisos talvez. Assim como esse texto.

Charles tem dúvidas sobre o quanto eu improviso de fato no ateliê. 


"Você sabe muito bem o que você está fazendo. A Pintura é competente, mas isso não é um elogio. Você sabe muito bem o que fazer com a tinta. Você sabe pintar, você sabe olhar pra pintura. A gente sabe fazer muitas coisas. É importante saber pintar, mas tem outros fatores. Tem certas soluções que você repete, que funcionam. Estilo é mais para quem está olhando e quer reconhecer algo. O artista deve fazer o oposto. Você está tranquila com a tinta. 
Vamos exercitar. 
Quero te ver perdida, ver você indo pra lugares desconfortáveis, a criatividade nos exige o tempo todo que a gente abra mão daquilo que já conhecemos para desbravar lugares inexplorados, é sobre estar em movimento.


Passamos quase três horas discutindo sobre o acaso na minha pintura. Eu tentei até desistir, contar pra ele que eu nunca sei o que eu estou fazendo

Você está dirigindo numa estrada e está perdida, não sabe pra onde está indo? Duvido!!!“ 

“Eu não sei pra onde estou indo, mas sei de onde parti, posso voltar quando quiser, por isso não me sinto perdida. Estou em busca. Em busca das trilhas.”


Quando criança eu morava dentro de uma Mata. Minha brincadeira preferida era a de abrir trilhas com as mãos e facão. A luz do sol entra por entre as folhagens úmidas na Serra da Mantiqueira, enaltecendo as cores e texturas da floresta. 


“Eu queria saber se eu não estava mentindo pra mim mesma.”

 A gente mente pra gente o tempo todo. O que você quer dizer com verdadeira?"

Não se preocupe se está comunicando ou não, preste atenção na coisa em si. Se você estiver no lugar certo, isso será um desdobramento, sempre é. Pessoas criativas não tentam ser criativas.


CW (sobre Joni Mitchell) Muitos diziam pra ela não ir pra esse caminho, é perigoso Joni. Vulnerabilidade demasiada, mas o que faz dela um gênio é como ela codifica o que ela sentiu na vida em sua música. Ela ter sentido apenas, não a faz escrever as canções. Ela sabe não ir longe demais - Ela deixa espaço para o outro entrar.


“Trilhas abertas.”

 É espaço pra pessoa sentir, não está tudo dito.


Ah…. Eu esqueci de contar!!! Nesses quase três anos, Charles nunca tinha visto meus trabalhos pessoalmente. Nossos encontros semanais ocorrem por zoom. Ele no Rio de Janeiro, eu em São Paulo. Fiquei à espreita quando ele entrou na Toca - meu ateliê. Queria registrar no peito o primeiríssimo olhar. 

Ver o seu trabalho pela primeira vez foi surpreendente. Eu achei melhor do que eu imaginava” 

Ri. Eu tinha certeza, daquelas certezas de dar medo, sabe? Ri novamente contando isso pra ele. 


Essas duas pinturas puxam para lugares muito diferentes. Na primeira há espaço, são quase 4 metros de pintura resolvidos com pouquíssimos elementos. Precisa como caligrafia. Já na segunda há camada em cima de camadas. Muita tinta e formas estruturadas. São pinturas boas em direções bem diferentes. Fico surpreso com a sua capacidade de lidar com o espaço, imagino que venha da sua intimidade com o teatro.


Na floresta sentimos o corpo todo ativado, 360º. A atmosfera é mágica tanto quanto misteriosa, com sentidos aguçados ouvimos melhor, sentimos o mergulho. Às vezes pode ser profundo e perigoso. A força da natureza te domina e te faz parte dela de forma orgânica. A relação entre o seu corpo e o corpo da natureza é de um-pra-um, em grande escala. Na Mantiqueira – montanhas que choram, na língua Tup-Guarani –, a água é abundante e pura, transparente, pode-se beber de cada riacho e a água tem um gosto forte, cheia de ferro com tom alaranjado. A água brota de muitos lugares, sendo possível encontrar pequenos escorrimentos jorrando a partir de fissuras nas pedras e fazendo seu curso fluir até alguma umidade maior. É um lugar especial, pouco habitado e quase virgem, inocente. Sincero. É de lá que vim. Lá eu me criei.


“A primeira sensação foi de surpresa. Por que eu senti em poucos segundos que o trabalho é melhor do que eu tinha imaginado, porque eu só tinha visto em tela de computador. Nem sempre é assim…. Muitas vezes, ver o trabalho pessoalmente é decepcionante. Eu senti também alívio. Ela não está patinando, atolando como um carro na lama, pensei. Ela tem a habilidade em baixo do braço. Agora vamos ver para onde tudo isso pode ir.” 
Rimos juntos. 


O que você quer com a sua pintura? Na sua mais fértil imaginação?” 

“Eu queria ver alguém chorando perante um quadro meu.” 

Leve sorriso

Pintura não tem emoção. Pintura tem tinta. Haja destreza como pintor para isso.

“Eu chamo estar perdida de Em busca de.” 

Eu também.


Deixe que os eventos te mudem. Você deve estar disposto a crescer. O crescimento é diferente de algo que acontece com você. Você o produz. Você o vive. Os pré-requisitos para o crescimento são: a abertura para vivenciar eventos e a disposição para ser modificado por eles.
Bruce Mau.

(texto de slide que eu printei em um dos encontros no grupo de acompanhamento com o Charles.)


Essa entrevista não é sobre mim

“Não mesmo. É entre. É sobre nós.”


                                                                                                  Luiza Gottschalk, 







(Nota de rodapé); 

1; As letras maiúsculas empregadas em determinados momentos em palavras pulverizadas ao longo do texto sugerem a elas o estatuto de nome próprio. 

*2; As aspas foram usadas como códigos poéticos ou falas teatrais - são partes recolhidas da entrevista de L.G. e C.W. . A conversa aconteceu por 7 horas divididas entre os dias 16 e 17/03/23, na Toca - ateliê de Luiza Gottschalk em São Paulo.


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