ao mesmo tempo me espalho e continuo aqui — arivanio alves

A Aura Galeria apresenta Ao mesmo tempo me espalho e continuo aqui, exposição individual do artista Arivanio Alves, com curadoria de Galciani Neves.

Começo, meio, começo. O giro epistêmico, diria quem dá nome aos ciclos da vida. Entre esses tempos, um princípio de transformação, como algo que, simultaneamente, vai (re)abrindo fissuras para se fincar os pés e inaugurando caminhos para se alongar as vistas. A encruza faz o olho também ir para os dentros, esses lugares tão incômodos. Seria mais fácil buscar um refúgio sob o manto de uma suposta neutralidade a revelar de onde a voz ecoa e com que propósito. O caso é que esses giros levam à interseccionalidade dos acontecimentos e dos lugares e versam sobre a não-linearidade histórica. Por causa dessa constatação, não compactuamos com a mera sucessão de fatos e seus supostos efeitos evolutivos, como queriam que o nosso rumo fosse: à “civilização”. Ou o vulgo: crescer, rapidamente planejar a oportunidade para sair e estudar para, aí sim, ser alguém na vida. Tudo é contingente e conflituoso. Lidamos com essas temporalidades (ou seriam rezas?). Agora e outrora, permanecendo e viajando (porque é preciso), memória recente que não se assentou e ancestralidade percorrendo as veias, quebranto das velhas e vídeos das redes sociais – tudo rodopiando, acontecendo junto e nos refazendo, filhas, filhos e filhes do terreiro dos bichos e do Sertão que é o mundo.

 “O nosso corpo é o nosso chão”, diz Sandra Benites. E antes dela, Patativa do Assaré: “A terra é um bem comum/ Que pertence a cada um (...) nas leis naturais/ Sabemos que a terra é nossa”. Nossos olhos são ligeiros para esse tanto de chão. Nossa terra, nosso corpo, bens de todes e de cada, mas há quem pregue que isso tudo, de tão grande, deve pertencer a um só. Habitar o Sertão é viver e ser o Sertão, entre outros humanos e outros não humanos - todes sem os quais a terra não seria essa terra. Isso nos revela assim uma concepção indissociável entre o habitar/ser, nada pacífico, quase nunca harmônico, mas que, no conflito, leva em conta com quem se vive, sabendo-se que só se pode ser o que se é sob a condição dessas muitas presenças e seus vínculos. Sem essa convivência, o chão não é o nosso chão, é só punhado de terra, desolação. Habitar/ser se dá nas relações, entre o que alguém tem, e outrem, não, pois daí, nascem as trocas. No Sertão, só se separa do chão por conta das obras contra as secas ou pela ação latifundiária, das quais é difícil demais fugir. O sul não é a primeira escolha, saibam. Separar-se da terra nem sempre é por vontade própria. Se for o destino, a poeira sobe. É que a terra se revira quando o corpo se desloca e, aí, o lugar todo se mexe junto. E aceitamos, pois é o giro da vida.

 As tantas histórias de Arivanio Alves estão aterradas nesse corpo-chão-conflito. Assim, nos conflitos e encruzilhadas, nas imaginações para des-retrair o corpo, surge a sua sede de pintar: a cerca, o amigo, a mãe, a árvore, a mulher com uma trouxa na cabeça, flores na mesa, Van Gogh, mãos na parede, desenhos nas carteiras da escola, cópias de grandes artistas. E as categorias se sucederam: pintor de parede, realista, naiff, “Arivanio pinta porque os espíritos mandam”, “artista que pesquisa”. Com pouco acesso a livros e a exposições de arte, estudava grandes artistas e pensava: “Se todos eles já morreram. Então, de artista aqui só tem eu. O que eu vou fazer?”. Começou a pintar, porque precisava acreditar em algo: nos estrondos, nos sinais, nas paredes encardidas, nos bichos, no corpo, na terra, enfim. Depois de um quase não começo, um corpo em forma de mundo aberto se recupera entre humanos, galinhas, cachorros e também apesar de toda a opressão que os assola. Arivanio pinta porque acredita que corpo, chão e conflito estão em um engodo só. E desatar esse enlace não é cura, é talvez existir na unicidade. E quem quer isso? Ainda criança sabia que, contraditoriamente, estava no chão onde seria preciso demarcar sua presença ao longo de sua vida. E a arte seria uma ferramenta, como um acesso ainda mais para dentro e ainda mais fundo no sertão, num lugar onde se espremeria com o mundo e se expandiria ainda mais com o mundo e ainda mais com o sertão. Nesse percurso, os salões de arte, a falta de visibilidade, a dificuldade de sustento, o mercado de arte, a pedagogia, os relatos “para se tornar um grande artista”, a necessidade de ter que vender para sobreviver intensificaram seus procedimentos poéticos para que ele visse o mundo a partir de Quixelô. “Porque tudo no mundo pode se desvelar com um gesto de ressignificar as histórias que não são nossas e de conferir a elas aquilo que lhes falta para nos reconhecermos. Eu tento fazer isso com a pintura, com os vermelhos, amarelos e ocres, que são minhas cores favoritas. E refletindo sobre aquilo que é intrínseco a mim”, explica Arivanio.

 Para o artista, um capítulo importante de sua trajetória com a pintura e com o desenho foi quando se deparou com algumas situações de maus-tratos a animais. A primeira delas foi uma parede preenchida de gaiolas. Muitos galos se amontoavam. Seres vivos aprisionados! Aquela cena lhe despertou muita indignação. Outra experiência foi decisiva: no interior do Ceará há uma prática comum de matar as fêmeas de cachorras abandonadas, que vivem nas ruas. “Que tipo de gente é capaz de fazer isso?”, se perguntou. E um terceiro fato adentra seu imaginário: corria um boato de que haviam matado uma onça na localidade de Vassouras, perto de onde vivia. Para Arivanio, a hipocrisia e a contradição conectam esses fatos. Seres humanos, como observa, são constituídos de componentes conflituosos, que convivem e se inter-relacionam: religiosidade e rinha, bem e mal, pobreza e riqueza, natureza e cidade. E assim ele começou a observar a vida e traçar relações entre bichos e gentes. “Não matem as trans, nem as onças”. “Não se faz isso com uma mãe, seja ela humana ou cadela”. “Diz que segue a palavra, mas encarcera bichos”. Diante dessas reflexões, sentidas na pele, recorreremos a Danna Hahaway, em O manifesto das espécies companheiras (2021): “O que mais se requer do humano é precisamente o que a maioria de nós nem imagina que não sabe como fazer – isto é, como enxergar quem são os cachorros e como ouvir o que eles estão nos dizendo, não de maneira abstrata e fria, mas com o estabelecimento de uma relação cara a cara, de uma alteridade não conectada”.

 Arivanio foi se entretendo em fabulações com bichos, em especial com as cachorras que, assim, como as galinhas, são chamadas de “pé duras” ou de gôso (cão pequeno e vulgar), porque vivem soltas, sem ninguém cuidar. E a despeito dos humanos, comem o que sobra e catam coisas no “meio do tempo”. Questionar o sentido que guia a diferença entre essas existências é localizar-se na fronteira entre mundos que, historicamente, foram desenhados com a contribuição dos processos civilizatórios: a natureza selvagem (o almoxarifado de recursos naturais disponíveis à existência humana) e o ser humano (proprietário da natureza). Nessa compreensão autocentrada de mundo, a “natureza bruta, selvagem” é o lugar onde habita e atua o ser humano e, assim, dela também fazem parte os gestos de exploração e transformação dos recursos naturais, ou seja, todo processamento, mecanismo e atividade que circundam o ser humano, e tudo que guarda os sinais e impactos de como o ser humano age com seu poder, querer e saber. O fato de o ser humano não se enxergar como parte desse organismo vivo (Gaia) não significa que “natureza” ou “meio ambiente” sejam conceitos menos antropocêntricos, muito pelo contrário, isso demostra uma ideologia de subordinação e dominação do mundo exterior como locus de sua ação. O trabalho de Arivanio nos puxa para a reflexão de que nas plantas, nas pedras, nos bichos, nas águas, nas terras, nas montanhas, nos seres vivos e não vivos, ou seja, em cada parte do mundo há um chamado para abandonarmos essa vida dicotômica, essa postulação hierárquica, (auto) destrutiva e por demais autocomplacente com a espécie humana.

 Com suas telas e desenhos que ocorrem nos retalhos de sacos de cimento, Arivanio também produz um chamamento, para ouvirmos vozes não-humanas. Podemos associar a construção de suas cenas com algo que a antropóloga francesa Nastassja Martin (Escute as feras, 2021) escutou de uma pessoa do povo Even, depois de ser atacada por um urso: “Não é com palavras que falam os bichos, se você está os vendo é porque estão falando com você”. Seguindo com os pensamentos relatados por Martin em seu diário, chegamos, embora cientes da diferença entre contextos, à outra confluência entre o encontro da antropóloga com o urso e a convivência de Arivanio com os bichos que integram seu cotidiano. Martin explica e propõe uma inversão de perspectiva. Para ela, o acontecimento não se trata de um ataque de um urso a uma mulher, mas sim: “um urso e uma mulher se encontram e as fronteiras entre os mundos implodem. Não apenas os limites físicos entre um humano e um bicho que, ao se confrontarem, abrem fendas no corpo e na cabeça”.

 No caso de Martin, o encontro poderia ter ocorrido há mil anos, como a própria autora defende. Nas telas e desenhos de Arivanio, o tempo político e o contexto das trajetórias que se imbricam – ser humano, terra, bicho – demarcam um confronto contemporâneo, em que a sordidez humana contorna o desfecho das cenas e as relações entre os agentes. Talvez, nesse sentido, nos deparemos com imagens muito calcadas no aqui/agora, que propõem questionamentos verossímeis e paradoxais, ao mesmo tempo: a semana de 1922 encenada por cães, Beyonce em cima de um cavalo como presidenta do Brasil, uma travesti (retrato de Yná Kabe Rodriguez) metade mulher/metade onça, parecendo nos contar mistérios, cães em cenas coletivas, cadelas dando à luz e inaugurando centelhas de mundo. Essas pinturas e desenhos encontram-se no terreno da fabulação, ou seja, são compostas como enredos nos quais ficção e real não são oposições. Arivanio as fabula a partir de uma noção em que a narrativa não se deixa interferir pela verdade dominante, cientificizada, composta por uma voz que não habita/é o lugar, nem tampouco se deixa atrelar a conceitos hegemônicos. O artista nega tudo isso para fazer memória, mito, oralidade. Isso se dá porque Arivanio conecta-se a um presente que percebe como acontecimento, movimento, e assim opera uma torção entre os instantes dos quais participa e o campo da arte que inventa com seus gestos, fazendo ambos serem possíveis de serem acessados, como camadas interpoladas.

 Outra questão a se ressaltar nessa construção de linguagem é que Arivanio pinta e desenha, enquanto conta histórias e imagina que irá vê-las, com e a partir de uma comunidade na qual os acontecimentos, como o passeio de um lobisomem que geme ou a cena da uma cachorra dando de mamar (referindo-se a Rômulo e Remo, mitos romanos diretamente ligados à fundação de Roma) são críveis e, assim, se espalham, ganhando detalhes que os tornam dinâmicos, sem serem devedores à única voz da verdade. Pois a cada vez que são percebidos e contados, ganham texturas, coexistências de tempos. Somados a tudo isso, a fatura de Arivanio se dá nos excessos: contrastes cromáticos, intensa diferenciação entre ambiente e personagens, demarcações formais nas expressões dos corpos, exagero no movimento dos corpos em cena. Tudo grita em Arivanio. É disso tudo e muito mais que é feita a profícua produção que sai e se enraíza em Quixelô, que permanece lá para ser do mundo também, que encolhe para aterrar, para depois surgir como um espelho implacável. Para fazer tudo isso, Arivanio sabe que ser artista custa uma vida inteira. No entanto, é na dedicação do fazer, entre o sustento da vida e o sistema da arte, que essas mirações se opõem “aos mitos de um povo que não nos reconhece como povo”, explica Arivanio, e, assim, nos contam da imensidão que é Quixelô, que é o Sertão do Ceará.

 

galciani neves
maio, 2023

visitação
04 mai, 2023 — 03 jun, 2023

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